sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

a alma imoral

"(...) um episódio paradigmático do momento de encontro dos interesses do corpo e da alma: a saída dos hebreus do Egito. Por tratar-se de um símbolo de movimento ativo para deixar a escravidão rumo à liberdade, esse acontecimento em muito se presta para exemplificar os processos humanos que realizam movimento semelhante.
(...) o Egito é, acima de tudo, um símbolo, por representar um lugar que "já foi bom" e deixou de ser. (...) a etimologia habraica da palavra Egito - mistraim - quer dizer lugar estreito.
Todos nós deparamos com lugares que se tornam estreitos em determinado momento. Estes lugares, que outrora serviram para nosso desenvolvimento e crescimento, se tornam apertados e limitadores.
No processo de saída de um lugar estreito, temos uma descrição interessante dos fatos históricos ocorridos no relato bíblico. Segundo o mesmo, o processo de saída esbarra num limite tão real e profundo como o mar.
(...) Quando resolvemos sair do lugar estreito, ocorre um processo semelhante com o corpo. O corpo não gosta de sair, de mudar. São a estreiteza e o desconforto que o convencem de que não existe outra saída. Mas para onde ir se o corpo não conhece nada de diferente de si mesmo? A alma, imoral em sua proposta de desalojamento do corpo, impõe uma caminhada que para o corpo acaba por ser um enfrentamento com uma barreira aparentemente intransponível. Como seguir rumo à terra prometida, ao futuro, se entre o presente e ela existe um fosso, um mar, absoluto. O corpo então questiona a sensatez da alma. Os portões do passado se fecham, os do futuro não estão abertos e o corpo experimenta a mais temida das sensações - o pânico de se extinguir.
Encurralado diante do mar, o povo, representativo do corpo, assume algumas posturas possíveis. De acordo com o ensinamento chassídicos, existem quatro comportamentos clássicos mencionados como quatro acampamentos. (...) O primeiro quer voltar, o segundo quer lutar, o terceiro quer jogar-se ao mar, o quarto mobiliza-se em oração.
(...) Nenhum dos acampamentos representa o futuro e a saída. Todos eles são variações sobre a hesitação e a vacilação. São, na realidade, a fronteira onde um corpo morre para renascer com uma mesma alma em outro corpo - do outro lado da margem.
(...) A resposta de D´us às vacilações do corpo, ou seja, resposta proveniente da fonte de toda alma e todo futuro, é igualmente decisiva e intrigante (Ex:14:15): "Diga a Israel que marche."
(...) Conhecemos o final do relato bíblico em que o mar se abre. Mas, para o Midrash - comentários alegóricos dos rabinos -, a abertura do mar se dá de uma maneira muito peculiar. Um homem chamado Nachshon ben Aminadav, que não sabia nadar, começou a adentrar as águas. Estas, no entanto, não se abriram num primeiro instante. Somente quando o homem já estava com a água no nível do nariz, as águas se abriram.
(...) Nachshon compreende a recomendação de D´us: "marchem". O futuro existe se vocês marcharem. O futuro, porém, não está ligado ao presente pelo corpo. A alma guiará o caminho seco por meio do molhado, de um corpo a outro ou de uma margem a outra.
Saber abrir mão desse corpo na fé de que outro se constituirá é saber dar o passo que leva até onde "não dá mais pé". Enquanto der pé, estaremos estacionados em acampamentos.
Esse profundo ato de confiança em si e no processo da vida garante a passagem pelo vazio que magicamente se concretiza em chão sob nossos pés. O que não existia passa a existir e um novo lugar amplo se faz acessível.
(...) Passar por um processo de mutação de maneira bem sucedida é irromper em um outro corpo que não se sabia que poderia conter nosso "eu"."

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